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Um Domingo Qualquer #040: Animalia – Capítulo II – Dia quente

Animalia

Capítulo II – Dia quente

Momentos antes dos eventos do primeiro capítulo.

– Eu acredito na evolução. Não desmereço religião nenhuma. Quem sou eu para desmerecer crenças alheias e, principalmente, a existência de Deus. As crenças das inúmeras religiões existentes são uma prova concreta da evolução! “Como assim, professor?”, vocês devem estar se perguntando. Simples. A evolução a qual estou me referindo, não é aquela proposta por Charles Darwin no século XIX. Mas sim, a evolução do homem como SO-CIE-DA-DE. O estudo da História traça um parâmetro claro do pensamento da humanidade através das eras. Não importa se o homem veio do macaco, dum punhado de barro ou de uma cagada alienígena! Desde que o homem primitivo desenvolveu seu telencéfalo e aprendeu a usar seu polegar opositor, ele vem evoluindo. Basta ver o pensamento de gerações passadas. Por puro egoísmo, nós achávamos que éramos o centro do universo. Que a Terra era quadrada, achatada ou sustentada por animais gigantes. Que o Sol girava à nossa volta. Enquanto, na verdade, somos apenas um ridículo pontinho no infinito. Por pura ignorância perseguimos e matamos aqueles que disseram o contrário. Por séculos a chamada palavra de Deus foi lida em idiomas que ninguém conhecia. Apenas para manter a ignorância naqueles que eram extorquidos, oprimidos e enganados pelas pessoas que deviam, na verdade, lhes trazer paz mental e uma consciência limpa! Usamos o nome de Deus para matar e conquistar. Usamos a religião como principal arma da intolerância. O nosso orgulho gerou sociedades cruéis, que mataram outros povos apenas por denominarem de sagrado um livro diferente. Escravizamos outros apenas por que a pele tinha mais melanina. Nossa ganância alimentou guerras e gerou um sem número de desabrigados, famintos e órfãos. Nossos representantes no governo fizeram essa mesmíssima estúpida coisa por séculos! Mas estamos evoluindo. À passos de lesma, mas… estamos evoluindo. Aprendemos a ser tolerantes. Aprendemos que muitas vezes, na maioria das vezes, na verdade, o diferente não é pior. É apenas… diferente. E com isso, sentimos os efeitos de uma palavra antiga: respeito. Após muitas batalhas, brigas, choro e ranger de dentes, conseguimos fazer com que o Governo fosse feito para o povo e pelo povo! As pessoas vivem mais. Sorriem mais. A tecnologia diariamente nos ajuda a nos comunicarmos, a aproveitarmos melhor nosso tempo. A difundir conhecimento! Que é, hoje, um bem mais valioso que o ouro! Não temos preocupações com ataques terroristas. Com ditadores. Com crimes bárbaros. Vocês, que hoje são apenas adolescentes, cheios de sonhos e esperanças, vivem na melhor época da humanidade! Sem sombra de dúvida. Façam por merecer. Criem alguma coisa de útil. Curem alguma doença. Não é por que melhoramos que devemos parar. Melhoramos, mas ainda tem muita coisa errada. Portanto, façam a vida de vocês valerem a pena. Renovem sempre a minha fé na humanidade.

Os olhos dos alunos brilhavam ao ouvir as palavras daquele discurso empolgado e otimista do professor.

***

Um dia depois dos eventos do primeiro capítulo

O dia estava quente. Realmente quente. A cidade já era quente por natureza, mas aquele calor definitivamente não era normal. Ele podia sentir sua pele queimando, quase como se fosse bacon sobre o fogo. O calor só não estava mais insuportável devido ao forte vento que vinha da praia. Ele queria sentir a textura da areia sob seus pés. Mas ela estava desumanamente quente. Apenas quando chegou na parte em que a água do mar tocava ele retirou os calçados. Sem hesitar, tirou também a blusa e o calção, ficando apenas de cueca, colada junto à pele.

Entrar no mar nunca havia sido tão prazeroso. O choque térmico nunca fora tão desejado. Ele fechou os olhos e apenas sentiu todo o seu corpo resfriar, à medida que avançava no oceano. Na primeira oportunidade, na primeira onda grande, ele mergulhou. Queria ficar ali debaixo para sempre. Há tempos não sentia o gosto salgado da água do mar. Nunca fora muito de ir à praia. Sempre levara uma vida caseira, na frente do computador e outros eletrônicos. Mas naquele momento ele estava feliz sem nada disso. Um sorriso estava estampado em sua boca salgada. Apesar do calor ainda abrasador, não era apenas o mar que constituía a sua felicidade ali. Uma pessoa especial estava ao seu lado. E não apenas ao lado. Mas junto dele. Era isso que fazia aquele dia abrasadoramente incomum tão feliz. O mar, aquela pessoa ao lado, e uma linda aurora boreal no horizonte.

Atrás deles, uma multidão também ia de encontro ao mar. Como se dele fosse sair algum presente ou um deus. Como se todas aquelas pessoas tivessem tido a mesma ideia. Como se fosse festa de ano-novo. Mas não era nada disso. Era apenas o dia que estava desoladoramente quente e lindo.

***

As passadas firmes e rápidas ressoavam no piso de porcelana do grande corredor presidencial. O homem que vestia um conjunto de terno e calça preta exibia um semblante visivelmente irritado e um olhar de causar medo até ao mais valente pugilista. Seus seguranças tentavam acompanhar o passo, com uma certa dificuldade. Chegando ao enorme portão construído com madeira de lei que vedava a entrada de quem não fosse autorizado à Câmara de Reuniões, o homem esperou que as câmeras de reconhecimento biométrico validassem sua entrada. A demora só aumentou ainda mais a sua raiva.

– Senhor Presidente, está quebrado. Lembra-se?

Era a força do hábito. Ele então puxou com dificuldade a pesada porta e mal entrou na sala, gritou com os que já estavam ali presentes:

– ALGUÉM PODE ME EXPLICAR QUE MERDA É ESTA QUE ESTÁ ACONTECENDO?

As pessoas apenas ficaram olhando, perplexas, diante da atitude inesperada do presidente. Ele foi andando rapidamente em direção à enorme mesa de vidro, onde se encontravam ministros e outros servidores do Estado. Um dos homens se levanta e diz:

– Digníssimo Sr. Presidente, gostaria primeiramente de falar que estou imensamente hon…
– Tá, tá, tá! Vamos deixar o blá blá blá de lado e ir logo ao que interessa. Quem aqui é capaz de me dizer o que está acontecendo?

O homem que fora interrompido indica um senhor que está sentando à duas poltronas dele. Ele parece estar tenso. Sua pele está corada e tem o olhar inquieto, não se fixando em nenhum ponto.

– Este é Samuel Henrique, chefe do setor de Pesquisas e Monitoramentos Espaciais da ANAE. Ele vai saber explicar.

Samuel se levanta, respira fundo, olha para os lados. Fixa o olhar na mesa e, depois de alguns segundos, olha para o presidente. Este, por sua vez, faz uma expressão de como quem dissesse: “Vamos, estou esperando“.

– Bem, Sr. Presidente, para encurtar logo a história, eu direi que hoje a Terra sofreu uma tempestade geomagnética. Tal tempestade, tem o poder de desestabilizar ou danificar componentes eletrônicos e geradores de energia. Assim, dependendo da intensidade da tempestade, ela pode inutilizar satélites, redes elétricas e instrumentos de navegação. E foi exatamente isso que aconteceu hoje.
– E qual foi a intensidade desta tempestade?
– Nós usamos três escalas para definir a intensidade delas. Como elas são causadas por erupções na superfície do sol, nós dizemos que uma tempestade fraca, que não causa nenhum dano à Terra, veio de uma erupção C. Tempestades médias, são causadas por erupções M e as mais fortes, nós dizemos que são causadas pelas erupções X. Que foi o caso da tempestade de hoje.

O presidente ficou pensativo por uns instantes. Então, indagou:

– E essas tempestades… essas erupções… elas são frequentes?
– Depende, senhor. Em algumas épocas as atividades solares são bem baixas. Em outras, período que denominamos de “Máximo Solar” elas são bem mais frequentes e intensas.
– E de quanto em quanto tempo ocorre esse “Máximo Solar”? Existe alguma regra, algum… algum… padrão!?
– Não há um padrão exato, mas eles acontecem geralmente em intervalos de 11 anos.

O presidente voltou a ficar pensativo, meneando a cabeça de forma positiva, como quem dizia: “Estou entendendo, estou entendendo…“. Mas então volta a questionar, num tom de voz calmo.

– Já que vocês têm conhecimento dessa periodicidade dos… “máximos solares”, por que não fizeram nada pra evitar? Por que não tomaram medidas preventivas?
– Sim, senhor, sempre que colocamos algum satélite em órbita, ele vai com a devida blindagem para a radiação oriunda do espaço. Especialmente aqui no Brasil, onde o campo magnético é bem menos espesso que no resto do planeta. No entanto, nenhuma blindagem é suficiente para o que tivemos hoje.

A expressão do presidente não era nada agradável. Ele pensou mais um pouco e então gritou, esmurrando a mesa:

– IMPOSSÍVEL! COM TODA A TECNOLOGIA QUE TEMOS! COM TANTOS “GÊNIOS” – ele fez o sinal de aspas ao pronunciar a palavra gênios – TRABALHANDO NESSA ÁREA, COMO NÃO DESENVOLVERAM ALGO RESISTENTE!? AGORA ESTAMOS SEM COMUNICAÇÃO. SEM ELETRÔNICOS. SEM ENERGIA ELÉTRICA! QUAL NOSSO PRÓXIMO PASSO AGORA!? CAÇAR!?

Um silêncio sorumbático tomou conta da sala. Todos olhavam para baixo ou para pontos vazios do ambiente. Mas o astrônomo Samuel Henrique havia ficado ofendido com as palavras grosseiras do presidente. Reuniu coragem e tentou se explicar, mais uma vez. Disse num tom de voz calmo e respeitoso:

– Digníssimo presidente. Essa tempestade solar… foi a mais forte da história, acredito eu. A tempestade mais severa da que se tinha notícia até hoje, foi a de 1859. Mais exatamente em 28/08/1859. O astrônomo Richard Carrington observou a maior labareda solar até então. Na época a eletricidade ainda não era tão presente na vida das pessoas, de modo que não houve muitos danos. Mas telégrafos no mundo todo falharam e os poucos postes de luz existentes na época entraram em curto-circuito ou em combustão. Havia tanta eletricidade no ar que alguns equipamentos, mesmo desconectados da tomada, ainda funcionavam. O fenômeno da aurora boreal, que geralmente é observado só nas regiões polares, foi visto até no Caribe! Não sei se o Sr. observou o céu esta manhã. A tempestade que enfrentamos hoje, foi duas vezes maior que a de 1859. Nós temos um sistema de comunicação direto com a NASA, nos EUA, para casos de emergência. Pouco mais de uma hora antes de todos os sistemas entrarem em pane, eles nos enviaram esta imagem do Sol.

Ele desenrolou um papel que tinha em mãos e mostrou a imagem. Uma grande e aterrorizante língua de fogo saindo do Sol.

– Essa explosão que você vê na imagem foi o que causou a tempestade geomagnética de hoje. Infelizmente ela estava perfeitamente alinhada com a Terra. Foi como um tiro direto, à queima roupa. Nada podia proteger.

Dando um risinho de canto de boca, o presidente falou:

– Como você conseguiu imprimir essa foto?
– Quando eu a vi, eu automaticamente deduzi que os equipamentos sofreriam pane. Logo eu corri pra imprimir esta imagem, antes que fosse tarde.

O presidente então sentou na cadeira, colocando seus cotovelos sobre a mesa e refugiou a cabeça entre seus braços. E assim ficou, de olhos fechados e cabeça baixa por algum tempo. Ninguém disse uma palavra.

***

O garoto estava deitado na cama, olhando para o teto branco de seu quarto. Nada de especial havia lá. Apenas uns pontos flutuantes, que mais pareciam micro-organismos que se moviam quando ele mexia seu olho. Já havia se perguntado se só ele tinha isso. Cansou de olhar para o nada e se levantou. Abriu a janela e enquanto a luz do dia cegava-lhe temporariamente a vista, ele se espreguiçava o máximo que podia. A falta de energia estava o matando. Não era nem a falta de energia em si. Mas a falta de internet. Era quase como uma crise de abstinência. O efeito colateral dessa ausência se chamava tédio. E escrito com um “T” bem grande e em negrito.

Ficou a observar a paisagem de sua janela. Algumas árvores, carros estacionados. Na verdade, quebrados. E o céu azul, sem nuvens. Nessa hora ele lembrava-se do calor infernal que estava fazendo e que não podia ligar o controlador de clima. Resolveu sair pra ver se o vento advindo da praia aliviava o calor.

Em sua caminhada, ele pôde observar algumas pessoas nas calçadas. Conversando sobre o acontecido, claro. Mas mesmo assim, isso era algo bem incomum de acontecer. Ele mesmo fazia tempo que não se reunia com os amigos para conversar. Fazia isso apenas pela internet. Continuou caminhando, sem direção ou destino específico. Até que avistou Luna. Era uma garota encantadora, de pele clara, olhos castanhos claros e uma franja que lhe dava um ar de menina. Ele gostava dela. Mas nunca havia expressado ou demonstrado de alguma maneira seu interesse. Pensou em falar com ela. Mas logo desistira da ideia. Até que ela o viu e acenou, com um lindo sorriso. Ele sorriu de volta e, de novo, mudou de ideia.

– Oi.
– Oi Fabrício! Como vai?
– Bem… levando a vida sem internet…
– Menino, que coisa! Na cidade toda faltou luz! E os celulares também não funcionam de jeito nenhum!
– Nem o meu. De ninguém.
– O que será que aconteceu?
– Não faço ideia… a gente não tem como se informar!
– Onde você estava quando isso tudo aconteceu?
– Em casa. Ia começar a trabalhar. Quando o computador desligou do nada.
– Ah é! Esqueci que você trabalha em casa. Quem me dera…
– Eu estava no carro com meu pai. Quando ele simplesmente morreu. O carro, não meu pai! – os dois riram.
– Eu entendi o que você quis dizer.
– Pois é… não respondia de jeito nenhum! Nem no modo manual!
– O carro lá de casa também morreu.
– Teve um cara que bateu no carro ao lado do nosso na avenida.
– É… tá um caos.

O assunto já começava a faltar. E ele nunca fora bom em puxar ou continuar conversas. Até que ela pergunta:

– Onde você estava indo?
– Não sei… estava apenas caminhando, sem rumo, sem direção.
– Hhhhmmm… Eu estava indo à bibliotca. Quer vir?
– Biblioteca?
– Sim, menino, aquela que tem perto do Forte.
– Mas todos os livros estão desativados. Não tem energia e nem internet.
– Mas eles ainda têm livros de verdade. – ela deu uma piscadinha pra ele.
– Ok. Estou sem fazer nada mesmo. – e sorriu pra ela.

A biblioteca estava praticamente vazia. Na seção de livros físicos, eles eram as únicas pessoas a caminharem entre os corredores de livros. Ele ia folheando todos os livros cuja capa lhe chamava a atenção. Pegou um de capa dura, pesado e ficou a observar a espessura do objeto. “Como que alguém podia ler num trambolho desses?“, pensava. Começou a passar as páginas e sentir a textura das folhas. Aproximou o nariz e não gostou do cheiro que sentiu. Começou a ler alguns trechos, até que Luna grita:

– FABRÍCIO, VEM AQUI! OLHA COMO ESTÁ O CÉU!

Ele se dirige à janela, onde ela se encontra e se depara com um céu totalmente diferente do de minutos antes. Até chegarem à biblioteca, ele estava num azul intenso. Mas agora, apresentava um show de luzes bruxuleantes. Talvez fosse uma das coisas mais lindas que ele já vira. Lembrava a aurora boreal. Mas uma coisa lhe intrigava: não havia auroras boreais no Brasil. Só nas regiões polares. Luna então sugeriu, com um sorriso enorme no rosto:

– Vamos à praia!? Deve estar ainda mais lindo lá!

***

Enquanto isso, nos Estados Unidos…

Um homem corre desesperadamente pelos corredores da Casa Branca. Ele carrega vários papéis amontoados e amassados. Seu rosto é de medo.

– PRECISO FALAR COM O PRESIDENTE! É URGENTE!

Ele fala para uns agentes que barram a entrada da Sala Presidencial.

– Por favor, isso é realmente urgente! É sobre a vida de todos nós!
– Deixe ele entrar, ele não está brincando. – fala outro homem de mais autoridade, num tom sério.

À contragosto, então, os agentes abrem a porta .

– Senhor Presidente, me desculpe a… me desculpe a intromissão – titubeia ofegante – mas…

Todos ficam atentos… Quando o homem recupera um pouco o fôlego…

– Temos de evacuar o país IMEDIATAMENTE!

Continua…

***

P.S.: A foto da explosão solar usada neste post é real. Aconteceu no dia 31 de agosto desse ano. Mas felizmente, ela não estava alinhada com a Terra. Mas sentimos seus efeitos três dias depois, com belíssimas auroras boreais nos polos. O que achou deste capítulo? Deixe a sua opinião, por favor, ela é muito importante pra eu saber como estou me saindo na elaboração da história.

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