Artigo porCamila Cristina Murta, líder do Grupo de Trabalho de Compras Públicas da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES)
A ideia de marketplace deixou de ser apenas uma vitrine digital de fornecedores para se tornar uma infraestrutura de contratação. Na iniciativa privada, plataformas como AWS Marketplace, Google Cloud Marketplace ou Azure Marketplace consolidaram o modelo: um ambiente único que reúne softwares, serviços, consultorias, dados e integrações, permitindo contratações modulares, escaláveis e auditáveis. O setor público passou a enxergar que o mesmo mecanismo pode resolver um problema estrutural das compras governamentais: a fragmentação de catálogos, a dificuldade de comparação de preços, a ausência de padronização de serviços e a lentidão dos processos licitatórios. Assim, “marketplace” passa a ser entendido como um ecossistema normatizado, onde fornecedores são previamente cadastrados ou credenciados, as ofertas são descritas de forma padronizada e o órgão público se conecta a essa estrutura para adquirir soluções com maior transparência, rastreabilidade e governança.
Esse conceito moderno se descola da noção tradicional de mero “portal de compras”. Ele se aproxima da lógica de plataformas digitais de contratação, características da economia digital e dos sistemas de computação em nuvem: catálogo vivo, preços dinâmicos, ofertas públicas que servem de âncora contratual, métricas padronizadas de uso e um ambiente regulatório que confere isonomia e auditabilidade. Por isso, marketplaces têm sido vistos como a camada tecnológica e jurídica que permitirá a contratação pública avançar para modelos de consumo mais inteligentes, baseados em demanda, interoperabilidade e governança de dados.
O uso de marketplaces pelo setor público brasileiro tem se desdobrado em duas frentes distintas, com propósitos complementares, mas naturezas jurídicas e operacionais diferentes: o Contrata+ Brasil, focado em inclusão econômica, e o Sistema de Compras Expressas (SICX), estruturado como instrumento oficial de aquisição de bens e serviços comuns padronizados.
O Contrata+ Brasil, do Governo Federal, é uma plataforma destinada exclusivamente a Microempreendedores Individuais (MEI), Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP). Sua lógica não é a de um marketplace transacional de bens ou serviços públicos, mas a de uma infraestrutura de apoio a pequenos negócios, oferecendo ferramentas para capacitação, desburocratização, regularização fiscal, acesso a crédito e integração com o ecossistema de compras governamentais. Ao reunir em um único ambiente serviços de apoio, trilhas de capacitação, oportunidades de negócios e orientações regulatórias, o Contrata+ Brasil prepara as MPEs para competir no mercado público e, por isso, deve ser entendido como um antecedente institucional, e não como um marketplace de contratação direta. A plataforma opera como mecanismo de inclusão econômica, fortalecendo a pluralidade de fornecedores e reduzindo assimetrias de informação — elementos indispensáveis para um mercado público mais competitivo.
O SICX, introduzido na Lei 14.133/2021 pela Lei 15.266/2025, representa um movimento de natureza diversa: ele institucionaliza um verdadeiro marketplace transacional de compras públicas, destinado à aquisição de bens e serviços comuns padronizados. Ao definir critérios de ingresso e permanência de fornecedores, regras de formação de preços, prazos, condições de pagamento e regime sancionatório integrado, o SICX adota uma lógica de plataforma digital de contratação compatível com experiências internacionais. Em vez de processos licitatórios individualizados, o SICX organiza um grande catálogo público, auditável e comparável, no qual itens padronizados podem ser contratados com maior velocidade, transparência e previsibilidade. Em certa medida, representa a chegada oficial da contratação pública por marketplace ao ordenamento jurídico brasileiro, ainda que restrito aos objetos de baixa variabilidade técnica.
Esses dois modelos revelam a intencionalidade do Governo Federal em reconstruir o mercado público brasileiro por meio de plataformas digitais, cada uma com um papel específico: o Contrata+ Brasil como porta de entrada para pequenos negócios e instrumento de democratização econômica; o SICX como mecanismo de transação padronizada e de racionalização da despesa pública. Embora distintos, ambos convergem para uma lógica de Estado-plataforma, em que catálogos, padronização e dados passam a ocupar o centro da contratação pública.
O arcabouço jurídico de suporte aos marketplaces se fragmenta em três blocos: o regime geral da Lei 14.133/2021, a atuação das estatais de tecnologia sob a Lei 13.303/2016 e o conjunto de normativas de governo digital, dentro do qual se destaca a Portaria SGD/MGI nº 5.950/2023.
A Lei 14.133 fornece a moldura procedimental para credenciamento, planejamento, padronização e gestão de riscos — pilares necessários para marketplaces. O art. 79, que disciplina a contratação por credenciamento, ganha protagonismo quando se pensa em marketplaces governamentais: ao permitir o ingresso permanente de fornecedores previamente habilitados mediante condições objetivas, cria um mecanismo que se encaixa com precisão no desenho de plataformas digitais de contratação. A lei também reforça o papel do planejamento, da gestão de riscos e da governança contratual, todos requisitos indispensáveis para contratações modulares e escaláveis como as típicas dos ambientes de nuvem.
A Portaria SGD/MGI nº 5.950/2023 é o ponto de virada regulatória. Ela estabelece o modelo normativo para a contratação de software e serviços de computação em nuvem no Executivo federal, incorporando métricas padronizadas — como as Unidades de Serviços de Nuvem (USN) — e definindo requisitos de planejamento, arquitetura, segurança, governança, migração e operação. Embora não crie um marketplace, a portaria dialoga diretamente com essa lógica: seus instrumentos pressupõem catálogos comparáveis, parametrização de consumo e contratação baseada em ofertas pré-formatadas. A adoção de multicatálogo público-privado, inclusive, surge como consequência natural, fazendo com que a portaria se torne uma ponte entre nuvem, plataforma e marketplace.
O alinhamento com as estratégias de governo digital é explícito. A Estratégia Nacional de Governo Digital (ENGD), instituída pelo Decreto nº 12.069/2024, coloca plataformas digitais públicas e interoperabilidade como eixos estruturantes da modernização administrativa. A Estratégia Federal de Governo Digital (EFGD), publicada pelo Decreto nº 12.198/2024, reforça a centralidade da computação em nuvem, da gestão de dados, da arquitetura modular e da padronização de serviços. Ambas tratam plataformas governamentais como infraestruturas de contratação e prestação de serviços, o que faz dos marketplaces não uma inovação isolada, mas uma extensão natural das políticas federais de transformação digital.
Nos ecossistemas de marketplace, a contratação pública deixa de se limitar à compra de software tradicional e passa a incorporar um conjunto muito mais amplo de soluções digitalizáveis. Serviços de infraestrutura em nuvem — como instâncias de computação, armazenamento, redes ou bancos de dados gerenciados — se encaixam perfeitamente nesse modelo, pois possuem métricas claras, preço unitário público e SLAs pré-definidos. Plataformas como AWS, Google Cloud e Azure já operam marketplaces nos quais esses serviços podem ser contratados com ampla governança e rastreabilidade.
Além da infraestrutura, surgem serviços de plataforma (PaaS), como ferramentas de analytics, motores de IA, orquestração de dados, pipelines de ETL e serviços serverless, todos com métricas padronizadas que facilitam a comparação entre fornecedores. Os marketplaces também permitem a contratação de SaaS verticalizados, como sistemas de gestão documental, plataformas de atendimento digital, módulos de segurança pública, engines de reconhecimento automatizado e soluções de interoperabilidade.
Outro eixo que se fortalece é a contratação de serviços profissionais padronizados. Operação de ambientes, serviços gerenciados (managed services), suporte técnico com métricas de tempo de resposta, implantação arquitetural, migração de workloads e consultorias de modernização passaram a estar disponíveis em marketplaces. Esses serviços utilizam templates de escopo baseados em práticas internacionais — como AWS MAP ou Microsoft Migration Factory — o que permite, inclusive para órgãos públicos, comparar escopos, preços e prazos com maior segurança jurídica.
Finalmente, ambientes avançados de dados, como data clean rooms, tornam-se contratáveis via marketplace. Essas estruturas permitem que múltiplos órgãos realizem análises conjuntas sem compartilhar dados brutos entre si, preservando privacidade e aderência à LGPD. A migração de soluções de data governance e IA para marketplaces abre espaço para que governos experimentem modelos sofisticados de exploração de dados com segurança, auditabilidade e limites claros de uso.
A adoção de marketplaces representa uma mudança estrutural na contratação pública de tecnologia. Durante décadas, a administração pública operou sob um modelo artesanal, baseado em longos cadernos de requisitos, licitações extensas e contratações monolíticas. Esse modelo não dialoga mais com a dinâmica da economia digital, marcada por modularidade, consumo sob demanda, escalabilidade e ciclos de atualização contínuos.
O marketplace introduz um paradigma orientado à composição e não à construção. Em vez de especificar, linha a linha, como um software deve funcionar, o Estado passa a contratar blocos modulares de soluções previamente analisadas, comparadas e testadas pelo mercado. A administração deixa de “encomendar sistemas” e passa a “adotar plataformas”, com governança centrada em dados, segurança, interoperabilidade e monitoração contínua. Esse modelo reduz drasticamente custos de transação, aumenta a transparência e fortalece a governança, pois o catálogo público e os preços de referência impedem distorções de mercado.
Além disso, os marketplaces são um instrumento de soberania digital. Ao fomentar o uso de plataformas públicas integradas, fortalecer estatais de tecnologia como brokers multicloud e institucionalizar modelos de governança de dados, o Estado aumenta sua capacidade de controlar arquiteturas críticas, distribuir riscos e assegurar padrões elevados de segurança da informação.
Se a contratação pública de TIC do século XX foi marcada pela customização excessiva e pela lentidão procedimental, a do século XXI será marcada por plataformas, catálogos, interoperabilidade e governança algorítmica. Os marketplaces são a infraestrutura que permite essa transição.
Referências bibliográficas
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BRASIL. Decreto nº 12.069, de 28 de março de 2024. Institui a Estratégia Nacional de Governo Digital 2024–2027.
BRASIL. Decreto nº 12.198, de 17 de junho de 2024. Estabelece a Estratégia Federal de Governo Digital 2024–2027.
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Institui a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
BRASIL. Lei nº 15.266, de 2025. Altera a Lei 14.133/2021 para instituir o Sistema de Compras Expressas – SICX.
CONJUR. “Compras Expressas (SICX): compreensão, lições e alertas.” Conjur, 02 nov. 2025.
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MINISTÉRIO DA GESTÃO E DA INOVAÇÃO. Portaria SGD/MGI nº 5.950, de 21 de dezembro de 2023 e ‘’Debate promovido no CLAD aborda potencial de marketplace governamental para modernizar compras públicas no Brasil’’ Portal Gov.br, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2024/novembro/debate-promovido-no-clad-aborda-potencial-de-marketplace-governamental-para-modernizar-compras-publicas-no-brasil
TELESÍNTESE. “Governo busca avançar na criação de marketplace para compras públicas.” Telesíntese, 2024.









